sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Retratos do Tempo


Muitas vezes a gente se perde no tempo. O que sobra? Lapsos de memória que os anos se encarregam de encarcerar. Mas vez por outra passa um filme e nos vemos como na tela.
É quando se pode ter uma idéia do traço que desenha o fetiche em nossas vidas.
Evidente que a infância é distante e inocente demais pra fazer parte do contexto, mas ela significa em certos casos o próprio apego a determinados valores. Os desenhos animados mostrando donzelinhas em perigo como cenário e as velhas bonequinhas das primas, irmãs e até mesmo amiguinhas, nas quais se usava linha de costura pra amarrar. Tudo isso monta um cenário.
Então vale a pergunta: como tratamos nossas memórias fetichistas?
Elas têm um significado importante, embora muitos a desprezem e até sintam vergonha de certas atitudes impensadas, e, como tudo na vida, diversas vezes nos arrependemos de não ter seguido outro caminho. Mas elas estão lá, em algum lugar que o tempo guardou.
E são tão nossas quanto os bens mais valiosos que acumulamos.
Há pessoas que se dedicam a preservar esse passado. Começam se espelhando em sua própria historia e, com isso, arrebatam seguidores que encontram na mesma trilha diversas semelhanças esquecidas. Postam filmes antigos, imagens de revistas e até fotografias que nos fazem voltar no tempo e encontrar as tais lembranças perdidas.
Entendo que fetiche é evolução. Algumas mudanças são necessárias durante a caminhada de quem se embrenha por esse universo. A inércia é prejudicial e muitas vezes alguns criam ramificações no passado que os fazem fechar os olhos a qualquer mutação.
E isso não é exclusivo de bondagista. A masoquista convicta que criava atritos em troca de uma boa surra ou o podólatra que quando menino brincava debaixo da mesa pra chegar perto dos pés das amigas da mãe. Qualquer fetichista que traz com ele o impulso da maternidade já criou seus roteiros dentro da inocência e sabe a que estou me referindo.
Por isso, costumo tratar bem minhas memórias fetichistas e até me esforço pra preservá-las. Entretanto, não vivo preso a elas e procuro evoluir pra meu próprio beneficio. Da mesma forma que um viciado em bondage deixa de amarrar os bracinhos de uma boneca de plástico pra imobilizar uma mulher de verdade, ou esquece os filminhos com a heroína presa nos trilhos do trem e assiste a bons clipes ou longas de puro bondage.
É dessa forma que os guetos se firmam no cenário do BDSM. Porque há a mistura entre os que trazem o fetiche do berço e os que encontram ao longo da vida. Não há distinção entre esses grupos, apenas sensíveis diferenças muito mais evidentes quanto ao aspecto necessidade. O que não significa que alguém recém chegado não possa ter a mesma dependência da prática, mas a carregará por um tempo bem menor e não terá as mesmas lembranças.
E pra essa galera do gueto sempre prego a teoria de que qualquer praticante de BDSM deve olhar com bons olhos o fetichismo. Tal atitude torna a prática mais intimista e cria uma atmosfera de magia maior que uma prática apenas por realizar um simples desejo.
O fetichismo cria um elo entre desejos e fantasias e com absoluta certeza intensifica as lembranças sem importar de que fase da vida elas provém.

Nos tempos pré-globalização ainda sem a internet existia uma interação interessante. Tudo funcionava por cartas, eram os chamados “pen friends”. Ainda que os fóruns fossem raros e distantes muitos obtinham feed back através desse caminho. Era bem bacana saber o que os caras do Hemisfério Norte, onde o BDSM era tratado com respeito, pensavam sobre o que aqui era apenas um ensaio solitário sem saber se existia vida além das nossas reflexões.
Tudo isso são lembranças e registram cada passo que se agrega pra chegar onde se imagina.
Claro que nos dias de hoje as lembranças têm 

uma conotação mais direta e ousaria dizer menos românticas. A aproximação do planeta interligado causa efeitos imediatos e nos afasta um pouco do imaginário e isso faz com que se forme um hiato entre ser e supor.
Mas jamais deixarão de fazer parte do nosso bloco de notas por toda a vida.

Um bom final de semana a todos!

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Afrodisíaco


Todo fetichista tem no fundo uma confissão a fazer. Não aquela que se conta pro Padre. As mais sórdidas são as de foro íntimo. E se um blog tem um aspecto de diário eu já andei me confessando por aqui.
E acho legal isso, afinal, se o sujeito não diz a que vem num lugar onde o desejo está à flor da pele ninguém é obrigado a ser vidente pra saber. Por isso, há artigos em que me declaro um batatólatra. Inventei o termo? Bobagem, muitos criam suas próprias peças e as encenam, então por que não eu?
E foi por essa pequena perversão que zoei a fotografia das batatas das pernas da Julia no Fetlife.
A Julia é daquelas pessoas que são como vinho. Quanto mais tempo se conhece mais se aprecia. O seu blog é um encontro entre o abstrato e o real, mas dentro de uma atmosfera de fazer inveja ao mais pensativo pensador. E essa história tem muito mais a ver com as opiniões da Julia do que seu belo blog onde dança na beira de um abismo ou até mesmo as suas lindas batatas de pernas que desafiam qualquer escultor.
Porque quando se conversa com fetichistas vários temas aparecem sem prévio aviso.
O que desperta interesse para alguns é sinônimo de rejeição para outros. Diria um grande amigo com a veia dominadora mais latente que uma blusa amarelo-limão debaixo da Luz Negra, que a melhor sensação que existe é dobrar a resistência de uma mulher submissa.
Já tenho outra visão. Porém, levo em conta todas elas.
O que significa que toda rejeição tem um ponto de cisão. Seja na base do papo, da entrega ou mesmo à força. Aspas aqui, por favor: “estamos falando de fetichismo, BDSM, essas coisas, portanto, entendam na boa porque tem muita cena consensual em que esse – à força – faz sentido”. E se existe um ponto de cisão em algum lado as pessoas precisam trabalhar as razoes pelas quais não conseguem se livrar dos próprios paradigmas que inventam.
Toda fobia quando não esmiuçada vira um paradigma na cabeça de alguém.
Lógico que as barreiras são enormes, mas em termos de fetichismo alguns casos são repetitivos e acabam atrapalhando alguns adeptos em suas caminhadas. Não estou falando de mudança de rota, atropelamento de desejos em detrimento de outrem ou algo do gênero. Fobias são medos. Simples.
É comum ver pessoas com rejeição ao aprisionamento. Cordas e correntes são como tubos de concreto que criam um muro na cabeça do fetichista ao ponto de rejeitar qualquer aproximação com esses objetos. Já perdi boas modelos do site Bound Brazil por conta desse tipo de fobia. No entanto, já recebi de volta àquelas que trabalharam seus subconscientes e conseguiram se livrar da fobia.
Mas tratam-se de pessoas sem qualquer interesse fetichista em busca de um trabalho remunerado que elas podem apenas exercer por um período. Enquanto o fetichista convicto perderia oportunidades por conta dessa rejeição. Por tal razão, é preciso trabalhar bem esse problema a fim de evitar a perda do próprio interesse futuro.
Fetichismo, BDSM é troca, jogo, prazer e fantasia. Extrair sensações prazerosas do que hoje é receio faz parte do aprendizado de cada um. Tudo pode ser afrodisíaco e bem vindo. Temor por cócegas, escuro, velas e outros, acabam afastando o fetichista do seu lugar comum.

O maior do males – e isso eu debatia com a Julia hoje – é a falta de interesse em tentar entender por outro ângulo um roteiro que se pré-estabelece como um mantra. Quando praticantes de BDSM entendem que o prazer comum vem acima do individual à tendência é que haja um crescimento em conjunto e a perfeição será a meta.
Em relações onde existe o respeito ao fetiche como necessidade fundamental qualquer tentativa de individualizar o prazer é o começo do desinteresse. Tal exemplo serviria para qualquer relação entre duas pessoas, sendo as que

admitem o fetichismo como parâmetro são as mais evidentes.
Resumindo, e como toda mulher tem sempre razão, dou de bandeja pra Julia e suas batatas por seus sábios argumentos.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Algo Além


Não sei por que cargas d’água o papo acabou em sexo. Aquela mulher quarentona, bonita e elegante na exata medida tinha um semblante muito fechado pra partir pra esse tipo de assunto. Tá legal que era uma roda de amigos, mas ela tinha um ar blasé demais pra tanto.
Nessas horas é impossível não perceber o que umas três taças de vinho são capazes em seu douto efeito. E a mulher entrou na dança justamente quando se falava em fetiches. Aliás, vale uma ressalva: esse livro dos cinqüenta tons é meio caminho...
Mas a moça veio com força e falou de forma rude que esse negócio de sadomasoquismo é coisa de doido. E pior, olhando pra mim, como se eu fosse o ultimo dos pagãos na face da terra desde Sodoma.
Mas eu encaixo bem esse tipo de resenha. E olha que ainda estávamos falando em fetiches comportados porque a maioria apenas demonstrava desejo de ler o livro. O papo era lingerie, saltos, pés e etc. Ninguém tinha cruzado a fronteira pra falar em tapinhas sequer. Acho até que alguém mencionou algemas e coisa e tal, mas a senhorita era feroz.
Quando deixei claro minha opção fetichista virei alvo. Dela é lógico, afinal, muitos ali sabiam da minha escolha e até conhecem o espaço aqui.
Lá pelas tantas a mocinha me perguntou se eu também transava papai e mamãe.
Acho um papo meio decadente esse negócio de papai e mamãe. A tal da “Missionary Position” é mais antiga que o Kama Sutra. O homem no topo e a mulher a espera. Mas pelo visto aquela pessoa elegante com tanto horror a práticas mais ardentes deveria se enfiar debaixo das cobertas e deixar de fora apenas os olhinhos se movendo. Já imagino a cena! Gemidos? Nunca, totalmente fora de critério, porque segundo ela algumas coisas são muito modernas pra seu entendimento.
Bom, diante disso e comparando as idades me senti um Dinossauro em pleno estado vegetativo imposto pelo Doutor No do Ian Fleming num filme de James Bond. Mas segui a linha colocando sobre a mesa que novas idéias e atitudes nunca fizeram mal dentro de uma relação. E o livro analisa o BDSM de fora pra dentro, justamente o que o povo que tem desejos ocultos e não gosta de se confessar mais se interessa.
No fim das contas aquela mulher mudou o tom e surgiu interagindo. Dava pitacos além do que havia opinado. Pensei: santa bipolaridade exposta! E em meio a risadas e mais garrafas de vinho vazias ela mandou uma bomba na mesa e confessou que em seu ultimo relacionamento havia visitado sexshops em busca de brinquedos eróticos, pois seu ex-namorado adorava um fio terra e estava inclinado a experimentar o que ela chamava de consolo com cinto.
Mas isso é inversão - eu disse. Espantada a moça não se deu conta que praticava um fetiche com seu parceiro muito requisitado por praticantes convictos de BDSM. Quando comecei a explicar ela se ajeitou e procurou ouvir atenta. E eu parecia um doutrinador em pleno exercício quando atento tomei ciência que ela o havia iniciado, porque segundo seu relato teria um gosto excêntrico por colocar o dedinho no ânus dos seus namorados desde muito jovem.
De repente ela caiu num abismo e ruborizou. Pela primeira vez se abria diante de amigos e sentiu o peso da confissão diante de olhares curiosos. Procurei deixá-la tranqüila, contei até alguns casos na tentativa de fazer algum coro, pra justamente passar a impressão de que ela não estava sozinha em meio ao povo já soltando desejos aos quatro cantos.
Voltando pra casa percebi o quanto o fetichismo assusta as pessoas.

Claro que ninguém é obrigado a contar suas aventuras e fantasias em meio a uma roda de amigos, mas também não é bacana eleger o fetichismo como uma prática pervertida, e pior, por absoluta falta de conhecimento, colocar todas as práticas num mesmo baú.
Não sei se verei mais aquela moça e ouvirei seus segredos, e tampouco saberei quantos sujeitos ela anda convencendo a serem sodomizados e em seguida deitar num papai e mamãe tão comportada como uma normalista.
No entanto, fica a lição pra ela, pra mim e pra todos de que o que nos leva a obter o prazer ao máximo não é fruto de fantasias inconfessáveis 

que podem não ser reveladas apenas, mas devem ser pelo menos admitidas em lugar de hostilizadas.  

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Os Nossos Jovens


Incrível como nos anos noventa o aparecimento da Internet fez todos apostarem num crescimento retilíneo do BDSM. Era a sonhada cereja do bolo, a comunhão entre todos os estilos e o tão desejado crescimento do fetichismo por essas bandas.
Ainda me lembro dos debates do antigo grupo Nós Somos e das perspectivas das pessoas.
Porque a grande jogada para qualquer segmento crescer responde pela adesão de simpatizantes e, principalmente, pelo surgimento da juventude dando as cartas. Continuidade e renovação, sempre necessárias.
Eu estava na casa dos trinta e já me sentia veterano.
Mas o tempo passou. E lentamente fez surgir um gueto aonde quem chega com a clara intenção de abocanhar conhecimento dá de cara com pessoas há mais tempo sem a mínima noção de comportamento. E os jovens são frágeis. Acabam por sucumbir a interesses mesquinhos e não são raras às vezes em que abandonam tudo.
É o que estamos fazendo com nossos jovens.
Complicado admitir a convivência com pessoas que até se identifica virtualmente e possuem vícios nada compatíveis com o meio onde dizem pertencer. Os caras praticam uma espécie de terrorismo psicológico nas submissas novatas e, através do assédio direto, conseguem invadir o perfil e mostrar uma face do BDSM que só existe em seus pensamentos.
Isso causa a imediata retirada de quem chega. As boas vindas acabam virando uma perturbação sem fim. O BDSM passa a não prestar por culpa de uma meia dúzia que acha nesse segmento um meio de vida fácil, praticando extorsões em mulheres casadas e outros.
Os sujeitos se dizem dominadores e abordam as submissas com palavras de ordem sem saber se elas querem ouvir. Ora, quem chega tem a clara impressão que está num hospício cercada de um bando de loucos.
O BDSM é permissivo, claro, mas pra tudo existe hora e local.
O que implica em dizer que todos deveriam ser catequistas antes de pensar num bem pessoal.
Deveria ser um fato a ser comemorado a presença de jovens interessados no BDSM, mas nem sempre a entrada é descomplicada pra essa gente que tenta perceber como tudo se processa por aqui.
Alguns dirão que quem bate na porta deve saber se defender de assédios e tal. Entretanto, existe a fragilidade, como a crença em tudo que se escreve ou divulga.
Ontem surgiu uma denuncia gravíssima no Fetlife sobre pessoas agregando amigos no meio para vender festas fantasmas com pagamento antecipado. É a picaretagem aderindo ao fetichismo, à exata noção do pilantra que se cerca de pessoas com nome fincado no meio pra fazer suas lambanças. E por trás dessa denuncia existem pessoas sérias e compromissadas com o BDSM em toda a sua extensão.
É o fim dos tempos...
Os novatos se sentem perdidos em meio a tanto bombardeio. A falta de experiência os faz regredir e quem perde é quem tenta de todas as formas transformar esse gueto num lugar de convivência decente. Sites de relacionamento se transformaram em picadeiros.

Gente que chega e imagina um bando de pervertidos desesperados atrás de loucuras sexuais vinte e quatro horas por dia. Então, serve de prato cheio pra quem imagina que recebeu um ticket gratuito pro reino da putaria. Não sou eu quem diz, basta observar!
Percorro o Fetlife, falo com amigos produtores, participo de alguns fóruns lá fora e nunca vi fatos como esse em voga.
O BDSM prega antes de qualquer principio algo que se chama acolhimento. Na base da porrada senhores, nem a mais convicta masoquista sucumbe a tamanha bizarria que tenho visto por aí. Até as submissas que curtem uma humilhação consideram o pior dos sentimentos quando isso ocorre fora de contexto.
Vamos abrir as portas sim, mas com decência.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Todos os Tons


Creio que nesses últimos dias devo ter recebido uns trocentos pedidos pra escrever alguma coisa relacionada ao livro Cinqüenta Tons de Cinza. Tudo a ver, afinal, o fato em si é responsável pela presença de muitas pessoas procurando saber se onde vivem existe algo similar e eficaz.
Embora tenha lido o livro, também li uma crônica consistente de alguém que sou muito fã.
Daí peço licença a Lady pra repostar e como sei que ela não se importa, fica a dica pra entender o livro, pra quem leu e pra quem ainda não teve acesso à essa obra.
Aspas pra Lady Vulgata

“Tempos atrás eu publiquei um texto sobre a construção do imaginário. Comentei como naturalmente criamos mitos em cima de pessoas que só conhecemos virtualmente ou com alguma distância em evento e festas, fetichistas ou não.
Recentemente comprei o livro 50 Tons de Cinza. Aliás, confesso, comprei logo toda a trilogia mesmo sabendo que os dois outros livros demorariam alguns meses para chegar. Comprei de teimosa, porque a maior parte dos meus amigos já torceu o nariz de cara para a sinopse. Assisti a alguns vídeos e fiquei apavorada quando a estória foi comparada a Crepúsculo – que não é exatamente o tipo de literatura que curto. Resumindo, pelas previsões, tinha tudo para odiar o livro e ter jogado meu rico dinheirinho no lixo.
Porém, surpresa! Eu amei o livro. Li em menos de dois dias as mais de 500 páginas do volume, ansiosa para que chegue o segundo, previsto para o mês que vem. E em meio a tantas críticas e o massacre da autora, resolvi escrever sobre o dito cujo com o pouco de autoridade que minha paixão por livros e meus anos de BDSM me conferem.
Analisemos os fatos. O livro foi escrito por uma mulher para mulheres LEIGAS. O livro tem uma narrativa bem construída, que cumpre perfeitamente aquela vontade louca de devorar uma página atrás da outra. O livro tem romance de forma pouco piegas e nada convencional. O livro mexe com a fantasia de toda mulher – ter em algum momento da vida um homem lindo, que a proteja e por que não rico?
Logo, o sucesso seria fatal. Se a senhora Erika Leonard James queria polêmica, ela conseguiu com elementos simples de acordo com os conceitos mais banais da psicologia social. Considerada uma das personalidades mais marcantes e influentes da Inglaterra contemporânea, a autora pisou num terreno sedento por aceitação. Por mais bem resolvidos que nós os fetichistas e/ou sadomasoquistas sejamos, sabemos que a marginalidade é a nossa praia e isso nem chega a incomodar alguns; mas perturba a muitos.
Li num comentário de um amigo que Cinqüenta Tons de Cinza é uma trilogia como Sabrina ou Júlia, ou qualquer romance água com açúcar que recheou os sonhos das meninas-moças das décadas de 60, 70, 80 e 90. Sim, concordo. E eu adorava aqueles romances.
Raramente entro em discussões acaloradas nas redes sociais porque penso que após dois ou três trechos o argumento dá lugar à vaidade numa disputa sedenta pela razão. Prefiro ficar lendo e refletindo. Porém, a reflexão central do sucesso de 50 Tons para mim passa por uma questão importante: por que o diferente precisa ser denso? Ou melhor, por que a leveza de um romance não pode habitar estórias fetichistas ou SM?
Partindo do pressuposto que a literatura, assim como o teatro, o cinema e as artes em geral devem nos levar a mundos distintos por meio do lúdico, do prazer, do novo, do inusitado, da provocação e até do incômodo, qual o grande ‘erro’ de 50 Tons para estar sendo tão criticado pelo público SM? Será que é medo de que muita gente queira de fato conhecer esse mundo perverso, mundano e luxurioso e nos perturbe a paz com suas perguntas ingênuas ou descabidas? Ora, senhores, e isso já não acontece com freqüência mesmo antes destes fenômenos literários que tiraram a poeira das prateleiras de Sade e Bataille?
Mulheres buscando um príncipe encantado, de chicote ou cavalo, sempre vão existir. Aliás, elas estão aos montes no FetLife e em todas as redes sociais, muitas vezes disfarçadas em peles costuradas em letras muito bem escritas, ideologias requentadas e frases de efeito reconstruídas.
Ok, o livro é ingênuo para um praticante SM. Concordo. Até porque talvez até eu virasse sub “Alice” se um Christian Gray me aparecesse pelo caminho...
O que temos na vida real é bem mais cru esteticamente e na prática! Não há quartos da dor, tampouco concessões contratuais naquele nível. Eu pelo menos nunca soube de nada parecido.
Talvez uma impressão mais próxima da realidade, igualmente despertando emoções, só que de forma mais crível para a mente de um sadomasoquista, está contida no livro Amsterdã SM, do professor Antonio Vicente Seraphim Pietroforte. Na trama - que uns dizem ser autobiográfica - o autor narra as bizarrices da capital do submundo numa perspectiva fetichista. As sensações inquietantes e indigestas nos fazem viajar pelas cenas da capital holandesa. Não a toa é considerada a melhor novela erótica sobre o tema escrita em português.
E o que seria a relação Anastacia Steel e Christian Gray real?
Em primeiro lugar, o livro me despertou lembranças, emoções inquietantes e nostálgicas pelas quais me senti confortada em perceber suas existências. Emoções relativas a submissos e dominadores com os quais tive relacionamento. Logo, se as emoções existiram, é porque existe um vínculo do devaneio da autora com as reais práticas BDSM.
O vínculo maior, para mim, foi a inquietação que uma pessoa sente ao entrar neste mundo. A sensação de ser diferente, lasciva de forma insana. Não é rebeldia; é a transgressão de si mesmo. E esta sensação está impregnada nas páginas de 50 Tons, sobretudo na personagem de Anastasia, a submissa.
Outro ponto fundamental que acho similar ao real é como a submissa conduz verdadeiramente a relação. Uma fala de Gray mais ou menos no meio do livro chega a declarar essa premissa com todas as letras. Eis uma ‘verdade’ polêmica da qual sempre falei em textos e conversas. O poder do submisso é muito grande e está na sua satisfação muitas das posturas do dominador. Com a desculpa de agradar ao dono ou dona, o submisso ou submissa se submete a certas transgressões, mas na verdade testa os limites e o poder de quem está acima no chicote, exigindo disciplina, equilíbrio e estudo freqüentes, além de uma sensibilidade e responsabilidade de que pouco se fala neste universo.
Por fim, apesar de ser um livro com poucas entrelinhas – tudo passa a ser muito explícito logo na terceira página -, há algo de revelador nas tentações movidas pelo marketing de prateleira. A dominação psicológica sempre terá mais valor do que qualquer prática ou mesmo teatro SM. E se E.L. James bebeu ou não bebeu da fonte (ela nega em entrevista recente concedida à Revista Veja), só ela mesma para explicar os agradecimentos prévios do livro. Para mim, fica claro que sim. Ela dá detalhes demais para alguém que apenas imaginou um cenário sadomaso. E sabemos muito bem que quando se trata do Lado B de cada um, tudo é muito relativo. Agatha Christie que o diga...”