
Vivia o que todos chamam de lua de mel com ele mesmo, tipo “eu me amo”.
Nunca vi ninguém contar as horas para o Domingo passar. Pra ele a musica do Fantástico era tudo de bom que existe no Planeta, e ao amanhecer de Segunda-Feira com um sorriso estampado no rosto corria para o trabalho.
Também pudera...
Podólatra assumido e benzido em sete encruzilhadas, André trabalhava numa sapataria de calçados femininos, o seu lugar perfeito. Você acha muito? Mas tem mais, porque devido ao tamanho acanhado da loja num pequeno shopping, André era o único vendedor disponível e bafejado pela sorte experimentando diversos pares de sapatos nas lindas mulheres que por lá apareciam.
Ardiloso, tinha uma tática infalível para usar e abusar do direito de ver de perto e tocar os pés das centenas de mulheres que pediam algum calçado: trazia sempre um número errado e quando ficava apertado ou folgado, colocava a culpa no fabricante sem o menor escrúpulo para buscar outro e ter a sorte de ficar aos pés de suas eleitas.
Assim passava seus melhores dias, mas havia um problema porque de tanto ver o mar e não poder nadar aos poucos se abria um abismo entre sua realidade e seu sonho. Viver de punheta é complicado...
Um ano trabalhando na mesma loja e colhendo as migalhas que lhe garantiam as masturbações, conheceu uma garota de uma loja vizinha e sucumbiu ao compromisso de gostar. Confessou-se amante de pés, achou reciprocidade e por respeito à pessoa que entrara recentemente em sua vida abandonou os devaneios no entra e sai de belos pés em maravilhosas sandálias.
Os dias felizes deram lugar a outros mais intensos e correspondidos, o que o fez abdicar do emprego em busca de algo mais sólido, pois já pensava em casamento.
Arranjou um emprego num banco e foi feliz pela segunda vez.
Mas nada como um dia após o outro com uma noite bem dormida no meio, e a ânsia da juventude fez com que sua relação fosse parar dentro do ralo. Terminaram.
André ficou sem chão e já não sabia se um dia seria possível encontrar alguém que lhe fosse tão recíproca e amante. A inevitável dor de cotovelo chegou com força e o arrastou de cara pra depressão.
Jurou nunca mais gostar de pés, odiou o fetiche e renegou seu próprio instinto.
Passou dias no escuro sem achar uma saída para seus males. Passou a viver num corpo sem vida, inerte, sem sonhos e fantasias.

André aceitou o desafio e foi viver ao lado de uma pessoa mais madura, sem os devaneios juvenis que lhe faziam acreditar estar diante de um caso concreto.
Reviveu o fetiche e foi correspondido, mas não fez juras de amor à felicidade para não morrer do mesmo mal, embora vivenciasse um presente melhor que o passado recente.
Quase um ano depois, passeando com sua mulher no shopping onde havia trabalhado, André viu-a atraída pela vitrine da loja que um dia fora seu nirvana. Em seu lugar um casal de discretos vendedores, e sem dar uma palavra sentou-se ao lado da esposa e assistiu imóvel o rapaz lhe trazer e calçar o sapato.
Naquele momento um filme lhe passou diante dos olhos quando se viu naquele lugar, e descobriu que a perfeição estava sentada ao seu lado, quando sua mulher lhe mostrou os pés calçados e perguntou: gostou?
Um comentário:
Que texto excelente!
Meus parabéns ACM!
A leitura foi divertida numa trama que recorda a nossa existência, a Humanidade: viver num ciclo entre segredos e prazeres..
Postar um comentário