
Agente se esforça pra não querer escutar o que rola na mesa ao lado, mas os bares às vezes pecam pelo espaço, as cadeiras se esbarram, telefones celulares tocam quase ao mesmo tempo, enfim, tudo se escuta mesmo quando as vozes tornam-se uma musica fora de ritmo em descontrolados decibéis.
E o bar do Manel não foge à regra. Filho de imigrantes portugueses assim como o escriba aqui, Manel herdou uma pequena espelunca caída ponto habitual de meia dúzia de pinguços, achou um espaço na calçada que transformou em varanda, colocou umas caixinhas de som que só dá pra ouvir enquanto está vazio, arranjou uma dona que prepara bons petiscos e danou a vender cerveja. Os amigos foram chegando e trazendo cada vez mais um para o famoso balcão de porções que se escolhe ali mesmo, basta levantar o plástico que protege dos insaciáveis insetos e fazer o pratinho.
Nesse lugar agradável onde muita gente se sente em casa, semana passada estava eu com alguns amigos e amigas quando na mesa ao lado (sempre na mesa ao lado, mas isso é fato e corriqueiro), um cara pra lá de chapado às nove da noite ouviu da acompanhante que se não parasse de olhar pra uma mulher falante que chamava a atenção alguns metros à frente, iria tomar algumas providencias. O diálogo foi mais ou menos assim: - Tu para quieto aqui nessa mesa e chega de dar voltinhas perto dessa sirigaita, senão pego uma corda e te amarro nessa cadeira.
Pronto, foi a senha necessária pra o entreouvido. O papo da minha mesa passou a ser secundário e eu só queria tentar me virar e olhar ao lado pra ver quem era a bondagista que ora se apresentava. Mas o aperto no Bar do Manel é de praxe e mover o esqueleto na direção contrária fica muito complicado. Explico: As cadeiras se entrelaçam parecendo um jogo chinês daqueles onde as peças se encaixam. Você escuta alguém falar e tem que fazer um movimento de 360 graus para tentar unir o som da voz e os lábios que as precedem, e pior, na mesa além do chapadão ouvia-se uma voz masculina e pelo menos três femininas, sem contar às pessoas que por falta absoluta de lugar ficam o tempo todo de pé, ou seja, fazendo uma conta de chegar temos um cálculo de umas oito a dez pessoas amontoadas ao redor de uma mesa com quatro cadeiras.
Mas sou insistente e procurei em meio a todo o burburinho natural do boteco gravar a voz que falava em fetiche quando o assunto era completamente diferente. Aliás, nesse momento nem me lembrava mais do era debatido e se alguém me pedisse opinião iria balbuciar o famoso “quê”?
Virei de lá pra cá e consegui ver três mulheres na casa dos trinta, sorrindo, bebendo, falando e busquei uma delas que estivesse com os olhos em cima do cara que cambaleava sem destino participando de todas as conversas que ao longe escutava, sim porque bêbado em bar é mais chato de aturar que aquela ampulheta do windows quando um programa de computador fica lento para abrir. Todo cara em começo de porre é pegajoso e inconveniente, sorri pra tudo e pra todos e quando desata a falar quer passar a impressão que conhece todos os assuntos. Arranja espaço, senta, dá tapa nas costas dos outros, beija a mulher alheia, enfim, pior que aturar um bêbado num bar só pegar ônibus errado com o último trocado que sobrou da passagem. Como dizem sabiamente os argentinos, “tenia una tranca...”.
Mas a mulher tinha os olhos grudados em todos os movimentos do espaçoso “bebum” e eu já sabia de quem se tratava. Pensei: será que ela falou isso da boca pra fora ou vai chegar em casa e colocar o ébrio num castigo de cordas de dar inveja a qualquer mestre de bondage? Será que rola um castigo sadomaso além do jogo de cordas?
Fiquei ali por vários minutos esperando que surgisse naquela mesa ao lado outro comentário a respeito do assunto, afinal se ela falou de forma que até eu pude ouvir em meio aquela bagunça sonora, na certa seus amigos também haviam notado tanto quanto eu e haveriam comentários descambando a conversa para o lado fetichista. Seria uma razão e tanto para que eu pedisse licença, buscasse espaço e sem a menor timidez entrasse no assunto que pra mim era mais interessante.
Mas elas continuaram com as conversas mais variáveis possíveis e nem por um momento sequer consegui escutar uma palavra a mais sobre fetiches.
Desiludido, voltei às conversas com meus amigos e nem notei quando eles pediram a conta e foram embora.
Contei essa história toda e quase não falei de fetiche, mas fica desse papo animado sobre o Bar do Manel uma constatação: quando estamos muito ligados a um determinado assunto toda e qualquer conversa a nossa volta padece em detrimento aquilo que nos interessa. Você pode se desligar do fetiche, buscar outros entretenimentos na vida o que é normal compreensível e saudável, mas quando o vento trás algum gesto ou palavra, pode ter certeza que seus olhos e pensamentos estarão voltados para onde surgiu o que mais te agrada.
E o melhor disso tudo é que o Manel está pensando em ampliar o seu bar, finalmente.
Um comentário:
verdade, quando agente gosta do fetiche e alguém toca no assunto um monte de coisas vem a cabeça.
falou tudo.
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