quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A Décima Segunda Viagem


Grego chegou atrasado e soltou um palavrão daqueles reclamando do tempo frio e chuvoso. Normalmente bem humorado pautava por uma educação irrepreensível o que tornava estranho tal comportamento, (apesar de concordar que um palavrão bem colocado e na situação devida soa como um orgasmo!), sentou do meu lado e começou a ladainha:
- Dia de chuva, tênis, sapatos, botas, nada de sandália e pé de fora, que merda!
Cheguei a pensar em argumentar as vantagens de um calçado mais atraente, na proteção que um pé bem cuidado necessita em dias molhados, mas nada disso convencia o irritado europeu com cara de estátua antiga. (Perdoa meu amigo, mas era assim que a galera te zoava nas entrelinhas...).
Ele nunca teve vergonha de falar do que gostava e enaltecia o seu fetiche a quem quer que fosse sem meias palavras ou rodeios. Cada tipo de pé era descrito com a perfeição de um Marchand ao vender sua obra de arte, pequenos, magros, gordinhos ou compridos, nada escapava de seu senso observador e sempre paciente com as críticas que alguém pudesse fazer ao tipo de pé enaltecido por ele.
- Gosto de olhar, imaginar, tocar com os olhos, supor o cheiro de couro misturado ao suor da fêmea que o carrega... (filosofava).
Naquele raro momento de irritação, Grego me confessou que no verão partiria para a Grécia pela décima segunda vez, porém de forma definitiva, porque seus pais assim haviam decidido. Afirmou resignado que os tempos no Brasil haviam acabado e que agora a meta era voltar para a terra natal, reaprender a pratica de seu idioma de origem, esquecer os amigos, recomeçar uma vida nova e na bagagem muitos pés de lembrança.
Enquanto seguia procurando por alguma garota que pudesse enfrentar a chuva e o frio com os pés à mostra, me disse que sua partida soava como um parto a fórceps e que jamais poderia imaginar-se longe dos amigos e de tudo. Me bateu na cabeça perguntar porque um cara com data marcada pra ir embora estava dando duro num curso de pré-vestibular. (Um aparte: para os mais jovens vale lembrar que para ingressar na universidade paga ou pública, era preciso enfrentar uma maratona de provas chamada de vestibular unificado). Eram tempos difíceis, um tudo ou nada que podia significar a entrada na faculdade ou começar tudo outra vez, uma única chance, um tiro de misericórdia dado com a derradeira bala. Mas Grego encarava tudo isso com naturalidade e não trocaria aqueles dias de convívio por nada nesse mundo.
Um dia tomei coragem e numa conversa reservada contei sobre meu fetiche por cordas, sobre bondage, o que significava, que finalidade havia e muito atento ele quis saber de tudo, detalhe por detalhe e mesmo sem imaginar como tudo funcionava e onde estava o “gatilho do fetiche” me deu apoio incondicional prometendo que manteria em sigilo por querer preservar meu segredo. Saí da conversa pensativo e no dia seguinte olhando meu amigo Grego como se fosse um espelho toquei no assunto na frente de todos e me senti sem um peso nas costas. Me olhou profundamente com orgulho e provocou os demais a assumirem seus gostos antes que qualquer piada ou critica pudesse vir à tona.
Tirei desse episódio todas as lições possíveis e daquele dia em diante nunca mais ousei esconder o meu fetiche de ninguém, ou sequer me escondi atrás dele. As atitudes do Grego foram minha luz e energia para que esse passo fosse de forma definitiva pelos anos que vieram. Até a sua partida falamos de nossos fetiches com mais alegria e liberdade, ensinamos um ao outro um pouco do que cada um sabia, rompemos barreiras e mostrei a ele que os pés que tanto lhe reluziam poderiam ficar mais lindos amarrados.
Nunca mais soube nada do Grego, se ficou ou se voltou, porém tenho a certeza de que ele trilhou o caminho da felicidade porque nunca se furtou a deixar as pessoas saberem de seus sonhos e desejos com simplicidade e coragem, por isso tenho absoluta certeza que seus dias foram e são maravilhosos.

7 comentários:

  1. Até que ponto o fetiche por pés pode ser atrativo para quem gosta de amarrar? Seriam os pés um bom complemento?
    Sempre que posso leio as matérias e sou admirador desse blog. Parabéns

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  2. Meu irmão,
    como cada um tem o seu grego em alguma hora da sua vida, não temo em dizer que o meu grego está sendo vc.
    E como cada um tem o grego que merece, o seu foi muito especial para vc, assim como o meu também é muito especial.
    O importante é que todos os "gregos" entram em nossas vidas para nos ensinarem muito e nos fazerem crescerem como ser humanos.

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  3. O QUE REALMENTE PARECE DIFICULTAR A VIDAR DOS BDSM E JUSTAMENTE A FORMA COMO SERÁO JULGADOS PELA SOCIEDADE, NÁO ACREDITO QUE TENHAM VERGONHA DE SEUS DESEJOS MAS DA VISÁO DA SOCIEDADE, MUITO PURITANA PARA ENTENDER QUE DESEJO FAZ PARTE DA VIDA, É O NOS MOVE, NOS FAZ ACORDAR E TER SENTIDO PARA ENFRENTAR AS DIVERSIDADES DO DIA A DIA.

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  4. claro q todo mundo deve conviver com coisas chamadas de esquisitas naturalmente, mas eh preciso antes de assumir para todos ter certeza do verdadeiro caminho. Nem sempre a nossa profissao nos dá essa oportunidade mas eu concordo que temos q colocar pra fora o que sentimos e naum podemos passar pela vida sem dizer a ninguem o q gostamos. Eh mais ou menos isso.

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  5. A teoria que você menciona na divulgação para as demais pessoas que conosco convivem é corajosa, concordo, mas nem sempre nosso meio social nos permite esse tipo de comportamento. Certas vezes engolimos a seco e caminhamos lado a lado com nossas vibrações sem poder falar nada e nos sentimos literalmente amordaçados. Mas eu gostei da sinceridade no texto mesmo em se tratando de algo antigo mas que vindo de você nada é impossível. Sua fã incondicional, Mariana (ST) Beijaaaaaaços!
    Mariana

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  6. Gostei muito do topico.
    Bem elaborado e de uma maneira de fácil compreensão. Me parece que é um tema que requer uma análise muito pessoal de cada um que está envolvido com fetiches. Porque contar, porque não contar?
    Assumir algo sem culpa as vezes é dificil se a cabeça não está muito bem resolvida. Parabéns pelo belo texto e também pela escolha.

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  7. Mariana, precisamos ter a coragem mostrada no texto para quebrar certos tabus. A sociedade é cheia de lixos que são mt piores que nossos fetiches mesmo que seja estranho para todos.

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